«No mundo do branco não há noite»

O Museu da Consolata – Arte Sacra e Etnologia, em Fátima, promoveu um «Chá com Arte especial», para inaugurar a exposição temporária sobre a Amazónia. O padre André Ribeiro e o jornalista Francisco Pedro foram os convidados

O «Chá com Arte» desta quarta-feira, 9 de outubro, que o Museu da Consolata promove com alguma regularidade, foi especial. Enquadrava-se na inauguração da exposição temporária «Amazónia | Yanomami, os guardiões da “Casa Comum”», e para a tertúlia foram convidados o padre André Ribeiro, missionário da Consolata, e o jornalista Francisco Pedro, autor das fotografias patentes na mostra.

O diretor do Museu da Consolata, Gonçalo Cardoso, que moderou a tertúlia, lançando algumas perguntas e deixando também espaço para um diálogo entre o público presente e os convidados, começou por explicar que a ideia desta iniciativa nasceu da vontade de assinalar o Mês Missionário Extraordinário e o Sínodo da Amazónia, que decorre em Roma.

Francisco Pedro, autor das fotografias e do título da exposição, explicou que a escolha se deveu ao facto de estarmos «a viver o Sínodo, por o Papa ter escrito brilhantemente a encíclica Laudato Si, sobre o cuidado da casa comum», e por os yanomami viveram em comunidade nas malocas, a sua «casa comum». «Penso que se começa a ter uma consciência diferente de que é preciso cuidar do ambiente, da natureza, das alterações climáticas, que o Papa pôs na ordem do dia», sublinhou.

O jornalista, e atual diretor executivo da FÁTIMA MISSIONÁRIA, esteve no Catrimani, na Amazónia brasileira, em 1999, numa altura em que se desenvolvia uma campanha internacional pela demarcação das terras e proteção dos povos indígenas, especialmente os yanomami, que chegaram a estar em perigo de extinção. Disse que apesar da sua experiência ter sido «mais profissional e pessoal do que pastoral», o que mais o marcou ao estar ali, com os índios, foi ver a forma como eles vivem «em equilíbrio com a natureza». Eles «vivem na terra, da terra e para a terra; retiram tudo o que é da floresta e vivem neste equilíbrio».

Além das fotografias clássicas, Francisco Pedro apresenta também nesta mostra três impressões fotográficas sobre folha de planta natural, através do método da fotossíntese. Uma técnica à qual se tem dedicado e que lhe tem dado «muito prazer fazer». Um prazer, entre tantos outros hobbies que tem – como «a fotografia, a escultura ou viajar».

«Vais ser verdadeiramente amigo?»
O padre André contou que esteve na Amazónia por dois períodos da sua vida, num total de nove anos, no Catrimani. Voltou há cerca de um mês para trabalhar em Portugal, e nesta tertúlia discorreu bastante sobre todos os temas relacionados com a floresta e os povos que a habitam. Recordou que, ao chegar ali, foi preciso distinguir a teoria da prática, pois estava a entrar num mundo e numa cultura completamente diferente. «Temos que voltar a ser criança; a aprender tudo de novo», disse o missionário, lembrando uma frase que ouviu – e o marcou -, logo nos primeiros contactos, quando os índios lhe perguntaram: «Vais ser verdadeiramente amigo? Vais ser generoso?». «A amizade e a generosidade são dois pilares fundamentais da cultura yanomami», sublinhou, acrescentado que aprendeu a trabalhar «com um povo completamente novo».

Francisco Pedro aproveitou para acrescentar que os costumes deles são mesmo muito diferentes dos nossos, a começar pela   «conceção que eles têm do mundo, completamente diferente da nossa». Para os yanomami, explicou, «o mundo está dividido em três partes, sendo a parte de cima sustentada pelos xamãs [curandeiros]. Quando morrer o ultimo xamã, perde-se a sustentação do céu e o mundo acaba». «É uma tribo que assenta muito em lendas e mitos, e onde a história é transmitida apenas por via oral», adiantou.

Perguntado sobre qual a prioridade no trabalho dos missionários junto dos índios yanomami, o padre André respondeu que «a prioridade era a saúde e a educação». E, diante de um perigo que percebe que ainda está latente, advertiu: «evangelizar não é colonizar», citando o Papa Francisco, nas palavras que pronunciou no início do Sínodo da Amazónia.

«Evangeliza-se através dos valores da nossa cultura e promovendo os valores da cultura deles, tentando descobrir as sementes do Verbo, os sinais da presença de Deus naquela cultura. Os princípios do nosso cristianismo estão lá dentro, de alguma forma», pormenorizou o sacerdote.

Encontro de culturas
André Ribeiro admitiu que há muitos perigos à espreita para este povo, com a quantidade de contactos culturais. E, para este missionário, natural da Sertã, o maior problema é quando duas culturas se encontram «e não se ajudam mutuamente».

Contou que quando chegaram os primeiros missionários, fora da floresta não havia mundo, mas com o tempo e, sobretudo, com a tentativa de abertura da Perimetral Norte, uma estrada estatal que ligava o Atlântico ao Pacífico, muita coisa mudou: «foram abrindo os horizontes» e favorecendo novos encontros; sobretudo para os jovens: «a aventura, agora, é sair do mundo da floresta e ir conhecer o mundo do branco».

E exemplificou explicando que, para os índios, «no mundo do branco não há noite». «Nós temos energia, eletricidade. Para o yanomami, é completamente o oposto: é o mundo da noite que traz as doenças, os inimigos, o estranho pode entrar na maloca e trazer a morte. É o medo do estranho, do desconhecimento do outro, que pode ser um potencial inimigo».

Contudo, o missionário defendeu que as culturas «devem ajudar-se uma à outra, não sobrepor-se uma sobre a outra», evitando as frases feitas e culturalmente preconceituosas, do tipo «coitadinhos dos índios que ainda andam nus», pois o clima, a floresta e o modo de vida, são propícios a isso. Por outro lado, lamentou o aumento do turismo de cariz sexual na Amazónia, sobretudo, junto dos povos aculturados da floresta.

André Ribeiro disse ainda que «quando não se respeita o outro, há sempre interferências, e ganha aquele que é mais forte. E com a situação política atual que o Brasil está a atravessar, as coisas complicam-se mais ainda».

Neste sentido, Francisco Pedro, que foi à Amazónia na sequência da campanha de demarcação e com o objetivo de ajudar aquele povo através das suas notícias e reportagens, admitiu que regressou com uma ideia diferente. «Voltei de lá com a ideia de que a melhor maneira de ajudar é não interferir, ou interferir o menos possível. Eles não são subdesenvolvidos. A nível de proteção da natureza eles são o melhor exemplo que nós temos. Nós andamos aqui a lutar pela reciclagem e eles não produzem uma grama de lixo. Retiram e devolvem à floresta. Isto fez-me refletir muito. Vamos deixá-los viver como eles gostam de viver», concluiu.

«Cada cultura, a de qualquer povo, desenvolve os meios e as condições técnicas, científicas, e por aí adiante para poder sobreviver. Tem que se fazer um processo. Eles desenvolveram uma cultura para viver dentro da mata, nós vivemos uma cultura para viver no nosso mundo. Por isso todos temos que aprender uns com os outros», rematou o padre André.

Visitas até novembro
A mostra «AMAZÓNIA | Yanomami, os guardiões da “Casa Comum”» poderá ser visitada até ao dia 9 de novembro. Em outubro, está aberta das 10h00 às 13h00 e das 14h00 às 18h00. Já em novembro, pode ser visitada das 10h00 às 13h00 e das 14h00 às 17h00. O Museu da Consolata – Arte Sacra e Etnologia encerra à segunda-feira.

Além das fotografias, encontram-se expostos alguns objetos do acervo do museu, habitualmente em reserva, como objetos relacionadas com a caça, pesca, alimentação e cultura dos yanomami, como os adornos.

Texto e foto: Albino Brás